Bucha no jeans

Bucha no jeans: Desconfia de quem pretende que só se pode melhorar a totalidade, ou coisa nenhuma. Max Horkheimer

domingo, 21 de novembro de 2010

Estava com saudade

Alguns dias sem publicar nada. Estávamos com saudade. Hoje trazemos um texto novo, contando uma visita a um velho amigo. Renovamos o Brasilógio com um glossário de termos regionais do nordeste do Brasil. Não replicamos nenhum texto de política, mas indicamos os links aí ao lado para ter acesso à excelente entrevista com a Marilena Chauí e tudo o mais que os blogs imperdíveis e incansáveis nos brindam todos os dias. Divirta-se. Bom início de semana.

Visitando o velho

Sentindo-me numa encruzilhada há meses, preocupado com os riscos das minhas escolhas para a minha família, satisfação pessoal, projeção social, saúde e alguns outros et ceteras, lembrei-me daquele velho. Só muito desesperado - eu que cria já não crer em sábios - me prestaria a visitar a casa de alguém depois de tantos anos para buscar conselho.

Pelo caminho, quase desisti cem vezes, mas fui impedido pela inércia e pela ânsia de um copo de água e de um pouco de sombra. O calor de mais de trinta graus fundiria em breve meu corpo ao banco do carro e as mãos ao volante e ao painel, como já fundira o temor e o fastio ao desconforto do corpo, transformando tudo numa só dor física. Acho que por isso cheguei lá.

Entrei no caramanchão de eras, quaresmeiras, jibóias e não sei que outras plantas capazes de trepar pelas paredes e bati no portão de madeira. Uma mulher com a bolsa ao ombro abriu imediatamente com uma cara de surpresa e eu entendi que só abrira por acaso. Ela disse “Só um momento” e voltou correndo pelo passeio sombreado, pôs a cara pra dentro de uma janela e gritou “Tem um moço aqui”. Moço? Era só um tratamento genérico. Já nem sou tão moço assim. Minhas têmporas o dizem. Saiu de novo me pedindo para entrar. Bateu o portão atrás de mim e foi embora sem dizer mais.

Eu estava num jardim. Não sou perito em botânicas e paisagismos e minha curiosidade se limitou a tentar identificar de onde vinham alguns cheiros. Um galho de murta tremulou sobre minha cabeça e seu cheiro provocou uma saudade que eu não pude investigar melhor naquele momento. Havia algo parecido com cidreira, refrescante, e notei uma moita de lavanda ao pé da porta. Devia haver muito mais, mas seria preciso uma meia hora no meio daquela pequena selva pra ler o aparente caos que a natureza levara anos para organizar. 

Passei pela porta-balcão vermelha de onde vinha um cheiro de incenso de sândalo e segui uma sucessão de nuvens de fumaça, umas pequenas copas de árvore suspensas, quase imóveis, esperando o próximo vento que as carregaria para o jardim. Do corredor pude ver as costas do velho inclinado sobre a escrivaninha posicionada sob uma janela que dava para os fundos da casa. Ele me chamou com um aceno, sem olhar para trás, depois girou a cadeira e me encarou, batucando uma música com a outra mão sobre o joelho. Abaixou a música no aparelho ao lado e ao fim de uns eternos três ou quatro segundos me cumprimentou:

-Pensei que não viesse mais. Quanto tempo! Quer um café? Melhor água, né? Pega aí nessa jarra. Tá geladinha. - Levantou da cadeira num pulo e se dirigiu para o corredor.  Voltou quando eu terminava de encher o segundo copo.

- Fui apagar aquele incenso. Foi a faxineira que acendeu. Ela gosta de dar um toque final à sua obra – ria. - Eu adoro sândalo, mas prefiro esses palitos apagados. Senta aí.

Sentamos. O espaço, um tipo de escritório, não passava de um final de corredor, nossos joelhos quase se tocavam. Ele me olhou no olho e afinal vi que o velho não era tão velho. Tinha cabelos brancos desgrenhados e a pele vincada, mas não flácida e sorria com dentes bonitos e olhos brilhantes. Sua aparência geral era bastante saudável. Por que nós o conhecíamos desde sempre como “o velho”? Na época em que freqüentava sua casa, eu e mais uns dois colegas de classe, além de sua sobrinha, aquele homem não devia ser mais velho do que sou agora.

- Sônia me ligou dizendo que talvez você viesse. E então no que eu posso ajudar?

Nesse momento, livre da sede e recuperado do calor da rua, senti vergonha. O que estava fazendo ali? Mexi sobre a almofada da cadeira e me veio à mente que uns dias atrás eu resolvera, pela primeira vez na vida, apanhar um daqueles bilhetinhos num realejo. O vaticínio era um antídoto amargo: “Se você está recorrendo à sorte é porque deve estar muito mal”. Vendiam desaforos! Mas o tom de voz do velho não era exatamente de solicitude protocolar. Era como se ele afirmasse que iria ajudar. Melhor, o seu trabalho já tinha começado.

- Bem, é que ando meio... muito... Ah, tô bem perdido. E esses dias lembrei muito de você. Quando vínhamos aqui, conversávamos horas sobre nossas idéias e vocações e parece que aquilo nos ajudou tanto a decidir o futuro.

- E deu tudo certo no seu futuro? Como você está se sentindo lá? - riu em silêncio.

Sorri amarelo em resposta e continuei no mesmo fôlego:

- Ah, devo ter feito algumas escolhas erradas. Estou me sentindo oprimido pelo rumo que as coisas tomaram, às vezes penso em largar tudo e ir plantar alface na montanha.

- É... pode ser boa idéia. Posso imaginar como está se sentindo. Conquistou quase todas as coisas pelas quais lutou nos últimos vinte anos e agora só consegue pensar no “quase” – riu de novo e voltou a tamborilar a musiquinha no joelho. – Não é isso?

- Não sei. Será? – não sabia mesmo, ou não sabia se sabia. – Sinto que o problema não é a quantidade, entende? É a qualidade. Será que errei tudo desde o começo?

Ele desligou a música, levantou longamente as mãos com as palmas voltadas pra mim como se pedisse pra esperar. – Olha, não vou responder essa pergunta do modo como você espera. Apenas direi, em defesa daquele garoto que você era, que você fez a melhor escolha que poderia ter feito. Nem mais, nem menos do que estava ao seu alcance. E sua vida nem está essa bagunça toda.

- É, eu sei que jovens acham que tudo é pra toda vida. Já não penso mais assim. Mas como posso fazer qualquer coisa com a sensação de estar arriscando o pouco que construí e como não fazer nada e sentir essa frustração imensa? Devo trocar o certo pelo duvidoso...

- Certo? Certa é só a morte. Sinto não poder responder a essa pergunta também. – seus olhos diziam: “não sinto por não querer responder a essa pergunta também, hahaha”. – Direi apenas algo que você leu num livrinho que te emprestei há muito tempo: “um homem sábio nunca pergunta a outro o que deve fazer”. Lembra do resto?

Foi como sentir um daqueles perfumes que refazem um momento preciso lá da adolescência. Embora não lembrasse das palavras, lembrava da idéia: “se ele for estúpido, lhe dará um mau conselho e se for sábio lhe dirá sempre para seguir o seu coração”. Mas era isso? Isso é tão kitsch. O que diz o coração? Como se alguém pudesse saber o que diz o coração!

- Mas agora é diferente – repliquei – parece que tudo está fora do compasso, como se o trem tivesse passado...

- E passou. Muitos trens passaram. E outros passarão. Quem é que precisa de um trem pontual quando não sabe aonde quer ir ou a que hora chegar? - Levantou da cadeira e pôs a mão nas minhas costas convidando a andar para outro cômodo.

Fomos à cozinha onde ligou a televisão e zapeou os canais até parar num jogo de futebol. Sentamos à mesa e ele nos serviu um café da garrafa térmica sem desgrudar os olhos do aparelho. Bebemos enquanto ele acompanhava com avidez os lances do jogo. Eu estava meio decepcionado. Também, o que eu esperava? Pousei os olhos sobre o quadro pendurado atrás do meu amigo velho e ele interceptou meu olhar com uma cara de quem não perdera um só segundo, apesar do futebol, do café e da mudança de ambiente.

- Sabe por que eu mantenho essa “Sant’Ana e Maria com menino Jesus” aí em cima? – A pergunta era retórica. Era claro que eu não saberia responder. Só me lembrei que ele gostava muito dos impressionistas, da pintura e da música. E mantinha até hoje uma réplica de Manet de frente para o longo corredor da casa. Renascentismo não me dizia nada.

- Quase todo mundo acha que esses sorrisos das mulheres do Leonardo sugerem um mistério, não é? – deu um gole comprido e terminou o café - Eu não concordo. Acho apenas sereno, pleno demais. Essa plenitude é que sugere que deve haver algo mais. Há? O que importa? Engraçado como a arte pode dizer tantas coisas, não é mesmo? Como aquele lá no fim do corredor. Aquele diz mais, bem mais. – E voltou para o jogo.

Terminado o café eu me levantei e disse que tinha que ir. Ele me acompanhou pelo corredor até a porta. No caminho, alcançou dois livretos da estante e me entregou sem dizer nada. Obediente, peguei. Vi que pelo menos um eu já lera e que não tinha nada demais, mas não discutiria agora. Ele me abraçou e zombou, pedindo para eu bater o portão e voltar em vinte anos. Atravessei o jardim e só então notei que ele ainda tinha aqueles bichos de madeira escondidos entre as plantas. Um macaco riu irônico de mim.

Dentro do carro, já em frente de casa, o calor tinha arrefecido e escurecia. Um vento morno passava pelas janelas e eu resolvi examinar os livros. Um deles continha uma conferência de um jusfilósofo à qual eu havia assistido pessoalmente no tempo da faculdade e o outro era um livro de poemas bem ruins do qual costumávamos rir muito no tempo do colégio e que eu acho que meu amigo só manteve em sua estante por causa da capa estampada com uma pintura de Seurat. Já lera ambos, de fato. Para quê aquilo? Conhecendo o velho eu sabia que não eram escolhas casuais, mas talvez ele tivesse perdido a mão. Eu também já não era aquele rapaz que lia mensagens universais em qualquer vôo de abelha ou latido de cão.

Entrei em casa e o resto da noite foi como de costume, até acordar durante a madrugada. Coisa rara, mesmo nesses tempos de angústia. Fui ao banheiro, tomei água e resolvi sentar um pouco na sala. Peguei os dois livrinhos, folheei aquela conferência e comecei a me lembrar do dia em que a assisti. Lembrei que ficara bastante decepcionado com a conferência. Tinha muita expectativa em razão da fama do conferencista e de já ter lido diversos textos seus de grande complexidade.

Naquele dia ele discorrera longamente sobre nossa incapacidade de perceber o valor das coisas a que amamos ou de que necessitamos, até o momento em que as perdemos. Depois associou esse comportamento a um traço cultural do cristianismo e ofereceu seus fundamentos lógicos e históricos para tudo isso. Eu não era bem o tipo teimoso, que refuta tudo gratuitamente, tampouco o tipo de aluno investigativo que questiona intencionalmente todo conceito a fim de testá-lo e aprofundar a compreensão. Mas naquele dia discordei de tudo. De muito, pelo menos. Era patente que qualquer criança de três anos de idade, incólume ainda à contaminação por qualquer cultura religiosa, só se dava conta da estima que tinha pelo seu brinquedo quando o perdia. Eu achei que isso era humano demais, em qualquer tempo e lugar.

Não sei se hoje concordo mais comigo ou com o filósofo. Mas a razão de ter recebido aquele livro me veio a reboque da retrospectiva. “O valor do objeto perdido”. O que tinha realmente importância para mim? Eu julgava não saber mais o que me era caro. Pois meu amigo velho estava me ajudando a escolher: “Perca para saber o que lhe é caro?”. Entretanto não seria razoável pedir a um homem que perdesse tudo a fim de descobrir do que mais gosta.

Como fazê-lo então? Ora, para essa questão, a resposta estava na capa do livrinho ruim. Uma pintura impressionista pode ser mais bem contemplada à distância! Eu devia me afastar. Só isso: olhar à distância.

O velho não dizia essas coisas diretamente. Nunca. Acho que esse era o seu jeito socrático de mostrar que as respostas antecedem as perguntas.

Voltei ao quarto, vesti uma roupa, juntei umas peças numa bolsa e deixei um bilhete à minha mulher: “Vou passar uns dias fora para por as idéias em ordem. Não se preocupe. Ligo todas as noites. Beijos”.

A culinária Maravilhosa de Viana Santos - indo para arquivo

Rir de si mesmo também faz parte da cultura brasileira. Rir do próprio salário então... Hoje o Brasilógio abre espaço para um script de stand-up comedy síndico-arakiri (essa eu nunca tinha visto!) do Carlos Alberto, funcionário do Judiciário paulista que desce a lenha nas mordomias (com mordomo e tudo) do Tribunal de Justiça, enquanto o funcionalismo amarga uma defazagem salarial tão severa que já está quase fazendo trabalho voluntário. Para os "descalços", Antonio Carlos Viana Santos é o atual Presidente do TJ-SP, aquele que por ocasião da ocupação do Fórum João Mendes por funcionários em greve, determinou: "Aqui não entra nem um pão com manteiga!". Seria apenas trágico, se não fosse também cômico.

A culinária maravilhosa de VIANA SANTOS

Na cozinha do Viana Santos, pão com manteiga não entra! E nem na casa do servidor do judiciário, mas isso é outra história! Aliás, Viana Santos nunca entra na cozinha de ninguém: ele espera na ante-sala para ser servido, porque esse negócio de cozinhar a própria comida é coisa de gente sem nível, tipo servidor do TJ! Rá rá rá!

Viana Santos tem o paladar tão refinado que quando vai na churrascaria, seu corte preferido não é a picanha, nem a maminha, nem a alcatra: é o corte de 54% do orçamento do judiciário! Tanto que está empurrando o corte goela abaixo do servidor sem sequer reclamar! Como o Zagallo disse: "vocês vão ter que engolir! hahahahaha!"

Viana Santos se preocupa tanto com a alimentação que agora criou uma coordenadoria de lanches para os desembargadores da corte. Porque a palavra "corte" no vocabulário dos magistrados tem um significado diferente do nosso: pra eles, corte quer dizer mordomia, pra nós, pindaíba! Hahahahahaha!

Viana Santos levou o assunto tão a sério que nomeou gente do mais alto gabarito pra cuidar da parte de lanches: os desembargadores GUILHERME GONÇALVES STRENGER e ROBERTO NUSSINKIS MAC CRACKEN.

MAC CRACKEN! Qual outra pessoa seria mais adequada pra cuidar dos lanches do que o Mac Cracken? Agora no TJ, o número 1 é o Big Mac, o número 2 é o Mac Chicken e o número 10 é o Mac Cracken, o primeiro sanduíche capa-preta da história do McDonald´s!

Agora a gente entende porque os desembargadores do TJ andam sempre com o rei na barriga! É culpa dos altos lanches servidos pela corte!

E o nosso vale alimentação não tem reajuste desde 2006. Quatro anos comendo a nove reais. A gente poderia chamar de vale-lanche, mas o número um do Big Mac subiu para R$15,40. Com esse valor, só paga a batata frita! E sem ketchup! Ra ra ra ra rá!

E em 2011 o lema do TJ é: orçamento magro para presidente gordo!

PT Saudações!

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Hoje, quase amanhã

Insistamos ainda um pouco. Leia e assine o manifesto "Vixe! Sou paulista, mas não sou idiota. São Paulo para todos".

Hoje só deu pra pensar em círculo. As árvores da mata e os cupins da capoeira repetiram-se, repetiram-se... 
Resolvemos manter o texto sobre Paranapiacaba, pois o tema, bem como a reflexão induzida pelo tema, são, além de uma pequena peça promocional do turismo à vila (brincadeirinha), um momento de refúgio ao desencanto do mundo – naquele sentido Weberiano e em quaisquer outros que seus conceitos possam ter sugerido pensar. Entretanto, isso não impede que o mundo gire e a lusitana rode.
Por falar em mundo, nosso novo post fala de economia (mundial) – que condiciona a política, que condiciona o direito, que condiciona a vida em sociedade, que condiciona a economia... não necessariamente nessa ordem.  E por falar em lusitana, o texto é do português Boaventura de Sousa Santos. É um textinho curto e pontual, sobre as (in)ações do G20, que serve como provocação para conhecer melhor qualquer coisa que ele tenha escrito. Boaventura é muito bom e deve ser, considerando a profusão do seu trabalho, o nome fantasia de uma academia inteira.
No Apesar dos Pesares, Ferreiras Gullares, trocamos o patrono do título por uma singela (não sei se sem pretensões) composição de José Miguel Wisnick que é uma belíssima canção na voz de Na Ozetti. Aliás, que tal começar o amanhã que se avizinha ouvindo essa canção. Canooooooa, canoooooa...

A História da Austeridade

por Boaventura de Sousa Santos, em Carta Maior
15/10/2010
A recente reunião do G-20 em Seul foi um fracasso total. Chegou a ser constrangedora a perda de credibilidade dos EUA, como suposta economia mais poderosa do mundo, e o modo como tentaram acusar a China de comportamentos monetários afinal tão protecionistas quanto os dos EUA. A reunião mostrou que a “ordem” econômico-financeira, criada no final da Segunda Guerra Mundial e já fortemente abalada depois da década de 1970, está a colapsar, sendo de prever a emergência de conflitos comerciais e monetários graves. Mas curiosamente estas divergências não têm eco na opinião pública mundial e, pelo contrário, um pouco por toda a parte os cidadãos vão sendo bombardeados pelas mesmas ideias de crise, de tempo de austeridade, de sacrificos repartidos. Há que analisar o que se esconde por detrás deste unanimismo.
Quem tomar por realidade o que lhe é servido como tal pelos discursos das agências financeiras internacionais e da grande maioria dos Governos nacionais nas diferentes regiões do mundo tenderá a ter sobre a crise econômica e financeira e sobre o modo como ela se repercute na sua vida as seguintes ideias: todos somos culpados da crise porque todos, cidadãos, empresas e Estado, vivemos acima das nossas posses e endividamo-nos em excesso; as dívidas têm de ser pagas e o Estado deve dar o exemplo; como subir os impostos agravaria a crise, a única solução será cortar as despesas do Estado reduzindo os serviços públicos, despedindo funcionários, reduzindo os seus salários e eliminando prestações sociais; estamos num periodo de austeridade que chega a todos e para a enfrentar temos que aguentar o sabor amargo de uma festa em que nos arruinamos e agora acabou; as diferenças ideológicas já não contam, o que conta é o imperativo de salvação nacional, e os políticos e as políticas têm de se juntar num largo consenso, bem no centro do espectro político.
Esta “realidade” é tão evidente que constitui um novo senso comum. E, no entanto, ela só é real na medida em que encobre bem outra realidade de que o cidadão comum tem, quando muito, uma ideia difusa e que reprime para não ser chamado ignorante, pouco patriótico ou mesmo louco. Essa outra realidade diz-nos o seguinte. A crise foi provocada por um sistema financeiro empolado, desregulado, chocantemente lucrativo e tão poderoso que, no momento em que explodiu e provocou um imenso buraco financeiro na economia mundial, conseguiu convencer os Estados (e, portanto, os cidadãos) a salvá-lo da bancarrota e a encher-lhe os cofres sem lhes pedir contas. Com isto, os Estados, já endividados, endividaram-se mais, tiveram de recorrer ao sistema financeiro que tinham acabado de resgatar e este, porque as regras de jogo não foram entretanto alteradas, decidiu que só emprestaria dinheiro nas condições que lhe garantissem lucros fabulosos até à próxima explosão. A preocupação com as dívidas é importante mas, se todos devem (famílias, empresas e Estado) e ninguém pode gastar, quem vai produzir, criar emprego e devolver a esperança às famílias?
Neste cenário, o futuro inevitável é a recessão, o aumento do desemprego e a miséria de quase todos. A história dos anos de 1930 diz-nos que a única solução é o Estado investir, criar emprego, tributar os super-ricos, regular o sistema financeiro. E quem fala de Estado, fala de conjuntos de Estados, como a União Europeia e o Mercosul. Só assim a austeridade será para todos e não apenas para as classes trabalhadoras e médias que mais dependem dos serviços do Estado.
Porque é que esta solução não parece hoje possível? Por uma decisão política dos que controlam o sistema financeiro e, indiretamente, os Estados. Consiste em enfraquecer ainda mais o Estado, liquidar o Estado de bem-estar onde ele ainda existe, debilitar o movimento operário ao ponto de os trabalhadores terem de aceitar trabalho nas condições e com a remuneração unilateralmente impostas pelos patrões. Como o Estado tende a ser um empregador menos autônomo e como as prestações sociais (saúde, educação, pensões, previdencia social) são feitas através de serviços públicos, o ataque deve ser centrado na função pública e nos que mais dependem dos serviços públicos. Para os que neste momento controlam o sistema financeiro é prioritário que os trabalhadores deixem de exigir uma parcela decente do rendimento nacional, e para isso é necessário eliminar todos os direitos que conquistaram depois da Segunda Guerra Mundial. O objetivo é voltar à política de classe pura e dura, ou seja, ao século XIX.
A política de classe conduz inevitávelmente à confrontação social e à violência. Como mostram bem a recentes eleições nos EUA, a crise econômica, em vez de impelir as divergências ideológicas a dissolverem-se no centro político, agrava-as e empurra-as para os extremos. Os políticos centristas (em que se incluem os políticos que se inspiraram na social democracia europeia) seriam prudentes se pensassem que na vigência do modelo que agora domina não há lugar para eles. Ao abraçarem o modelo estão a cometer suicídio. Temos de nos preparar para uma profunda reconstituição das forças políticas, para a reinvenção da mobilização social da resistência e da proposição de alternativas e, em última instância, para a reforma política e para a refundação democrática do Estado.
(*)Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

Sábado em Paranapiacaba

Paranapiacaba, em tupi-guarani - “de onde se avista o mar”. Nem sempre! Qual a expressão em tupi-guarani para “onde não se vê um palmo à frente do nariz”? Essa era a minha pergunta esta tarde, ao dirigir com as fuças no pára-brisa e andando a pé pelas ruas de paralelepípedo da velha vila. 
Eu conheço o lugar desde pequeno e voltei ali esporadicamente, à caça do contato com a natureza e alguma aventura nas trilhas e cachoeiras. De brinde as ruazinhas alinhadas com suas casas vermelhas de madeira, a onipresença da ferrovia e a parte alta da vila, feito uma sentinela, invejando tudo à meia distância. A visão desse conjunto – mais ou menos nítida, a depender da imprevisível neblina - transporta a imaginação para um outro tempo, um outro país, uma outra dimensão.
O elemento mais singular, no entanto, eu não havia percebido conscientemente: o silêncio. Minha filha falou desse silêncio quando admirávamos uma ampla casa de engenheiro pintada de creme, tão distinta das vermelhas dos operários. Por um momento fechei os olhos e dei uma pausa no exercício sub-reptício de rir da divisão de classes estampada nas fachadas.
Aquele silêncio não era a ausência completa de som. Havia vez ou outra um barulhinho de gente passando, uma queda d’água, crianças chamando um nome. No isolamento da vila encravada na serra e agasalhada pela mata atlântica, o silêncio não é apenas a pausa milimétrica entre um motor de carro e outro, ele reina como a lona sobre o circo.
Se você for a Paranapiacaba um dia desses, vai gostar de ver a torre com o relógio inglês da ferrovia e a exuberância da mata, o conjunto arquitetônico e sua própria versão do fog. Vai deplorar a má conservação de parte do patrimônio, especialmente a própria ferrovia. Mas se tiver a sorte de não se distrair demais com nenhuma dessas coisas ao virar alguma esquina centenária, pode topar - envolto em brumas e silêncio - com você mesmo. 

Indo para o Arquivo: Ferreira Gullar

Poema Sujo (trecho)
Ferreira Gullar

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

mas variados são os modos
como uma coisa está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está
em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a folheia

a cidade está no homem
mas não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo

a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa

sábado, 13 de novembro de 2010

Sábado em Paranapiacaba

Antes de ler, assine o Manifesto "Vixe! Sou paulista, mas não sou idiota. São Paulo para todos". Obrigado.
http://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/7419

Paranapiacaba, em tupi-guarani - “de onde se avista o mar”. Nem sempre! Qual a expressão em tupi-guarani para “onde não se vê um palmo à frente do nariz”? Essa era a minha pergunta esta tarde, ao dirigir com as fuças no pára-brisa e andando a pé pelas ruas de paralelepípedo da velha vila. 

Eu conheço o lugar desde pequeno e voltei ali esporadicamente, à caça do contato com a natureza e alguma aventura nas trilhas e cachoeiras. De brinde as ruazinhas alinhadas com suas casas vermelhas de madeira, a onipresença da ferrovia e a parte alta da vila, feito uma sentinela, invejando tudo à meia distância. A visão desse conjunto – mais ou menos nítida, a depender da imprevisível neblina - transporta a imaginação para um outro tempo, um outro país, uma outra dimensão.
O elemento mais singular, no entanto, eu não havia percebido conscientemente: o silêncio. Minha filha falou desse silêncio quando admirávamos uma ampla casa de engenheiro pintada de creme, tão distinta das vermelhas dos operários. Por um momento fechei os olhos e dei uma pausa no exercício sub-reptício de rir da divisão de classes estampada nas fachadas.
Aquele silêncio não era a ausência completa de som. Havia vez ou outra um barulhinho de gente passando, uma queda d’água, crianças chamando um nome. No isolamento da vila encravada na serra e agasalhada pela mata atlântica, o silêncio não é apenas a pausa milimétrica entre um motor de carro e outro, ele reina como a lona sobre o circo.
Se você for a Paranapiacaba um dia desses, vai gostar de ver a torre com o relógio inglês da ferrovia e a exuberância da mata, o conjunto arquitetônico e sua própria versão do fog. Vai deplorar a má conservação de parte do patrimônio, especialmente a própria ferrovia. Mas se tiver a sorte de não se distrair demais com nenhuma dessas coisas, ao virar alguma esquina centenária, pode topar - envolto em brumas e silêncio - com você mesmo. 

Movimentos sociais e religiosos hoje são objetos da política

Paulo Cezar da Rosa – Carta Capital
12 de novembro de 2010 às 11:19h


O final do século passado foi o melhor momento para os movimentos sociais no Brasil. Sindicatos e movimentos tinham bandeiras a defender e bases dispostas a lutar. Foi, também, o melhor momento da religiosidade popular. Comunidades eclesiais de base, pastorais operárias, e organizações que misturavam a fé com a luta contra a opressão e a esperança numa vida melhor, tinham larga audiência no Brasil pós-Ditadura Militar.
Os anos 80 e 90 também foram os da esquerda brasileira. Depois da luta armada, a esquerda se jogou na aventura da disputa da hegemonia na sociedade por meios pacíficos. Enraizada neste período nas universidades, as organizações que sucederam a guerrilha urbana se somaram aos trabalhadores organizados em sindicatos e aos movimentos eclesiais de base para fundar o PT.
Deu no que deu. Deu em Lula presidente por oito anos. De 2002 a 2010 vivemos a afirmação de um projeto de nação com espaço para todos. Foram os anos de glória da luta social no Brasil.
Hoje, contudo, além de reconhecer que o país mudou, é preciso identificar a abertura de um novo período. E perceber que a mudança em curso tem um lado negativo para os movimentos sociais, para a religiosidade popular, e até para  a esquerda. Por quê? Porque o Estado brasileiro se fortalece e as demandas populares vem sendo atendidas, esvaziando a luta social e o cenário de injustiças. Ao mesmo tempo, não se vê uma renovação dos movimentos, dos sindicatos, das lutas sociais.
De sujeitos a objetos da política
Sim, sei que a afirmação de que a mudança é negativa para a esquerda é questionável. Mas vamos às duas anteriores, que são certeiras. Os movimentos sociais nos últimos anos, de sujeitos da política no Brasil, vem se tornando objetos das políticas governamentais. Não se trata aqui de condenar o Bolsa Família, a política do salário mínimo, o Pró-UNI, o Minha Casa-Minha Vida, etc. Todos os  programas governamentais, que respondem às demandas históricas dos movimentos sociais, são conquistas e devem ser vistas como tais.
Todavia, estamos hoje vivendo uma mudança de relação de poder muito importante. Hoje, temos um Estado forte na questão social e uma sociedade fraca. Os movimentos sociais, que no final do século passado eram protagonistas políticos, apontavam novos caminhos para a sociedade, hoje são meros objetos das políticas governamentais. O mesmo ocorre com a religião.
A prova disso está na análise do perfil dos eleitos na última eleição. Também o debate se deu sob essa lógica. Mais do que ser objeto da política, a religiosidade do povo brasileiro foi objeto da pior política. O mesmo relativamente às demandas populares. O salário mínimo, o Bolsa família, o Pro-UNI – todos viraram pais da ideia e todos se tornaram seus defensores radicais.
Os sindicalistas em baixa
Procure no seu Estado a votação obtida por lideranças sindicais para o parlamento estadual ou federal. Com raras exceções, em geral explicadas por fatores externos ao sindicalismo, os líderes sindicais tiveram poucos votos. Procure também a votação de lideranças populares ou religiosas. A situação é parecida. Os líderes sociais e religiosos do final do século passado estão entrando a segunda década do século XXI em baixa.
Muito ainda será dito a respeito da genialidade de Lula ao indicar Dilma Roussef para sucedê-lo. Mas creio que poucos dirão o seguinte: Luiz Inácio Lula da Silva, tendo a opção de prolongar a liderança dos movimentos sociais no país, promovendo a candidatura de algum companheiro do movimento sindical (como Jacques Vagner, por exemplo, entre tantos outros), ou de revigorar sua aliança com os setores religiosos (as alternativas também eram variadas), fez a opção de colocar a frente do país uma militante de esquerda.
Os desafios da esquerda
Ou seja, hoje, passados quase trinta anos de desenvolvimento do movimento que mudou o Brasil para melhor, a sua principal liderança coloca nas mãos da esquerda  brasileira – ou seja, nas mãos de Dilma Roussef – os destinos do país e do próprio movimento social.
Esta esquerda, formada no combate à ditadura e herdeira de combates históricos na sociedade, hoje está colocada diante de seu maior desafio. Se Dilma der certo, a esquerda será vitoriosa. Mas a esquerda brasileira precisa entender que, para Dilma dar certo, vai precisar como nunca nos próximos anos dos movimentos sociais e da fé do povo.
Ou seja, seus governos precisam fortalecer, e não enfraquecer, os movimentos sociais e associativos do povo. Precisam, como nunca, reinventar a esquerda no país. E para reinventar a esquerda, os elementos essenciais são a união dos de baixo (ou seja, sindicatos e associações fortes) e a fé no futuro.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Vamos sobrevivendo sem um arranhão.

Por sorte não é da caridade de quem nos detesta. Pelo menos achamos que não.
No quarto dia replicamos o texto do Mauro Santayana sobre um tema relevante e oportuno. Se os líderes do G20 concordarem que as alternativas são Keynes ou Marx, estamos bem. No Brasilógio mandamos a malícia baiana para o arquivo e apresentamos um script de stand-up comedy síndico-arakiri (viajamos). Tem um texto novo no Falando Sério na Academia, mas só pra quem curte Filosofia Política e Jurídica. É, tem gente que gosta dessas coisas. Considerando que deve ser, assim, tipo, um por cento da população; considerando que esse blog deve estar sendo - na melhor das hipóteses - visitado por umas dez pessoas por dia; considerando que... ah, vocês já sabem onde é que esse negócio vai dar. No mais, chove muito nas Minas Gerais. Há braços.

Seul entre Keynes e Marx

Jornal do Brasil, 12/11/2010
Mauro Santayana

Os cenários mudam, envelhecem os tempos, a retórica ganha novos vocábulos, mas o problema real é sempre o mesmo: o do confronto entre o predador e a presa; entre a presunção de que a força faz o direito e a resistência das vítimas; entre os ricos e os pobres. O encontro de Seul anuncia o malogro: todos querem ampliar o seu mercado, seja para obter matérias primas, seja para vender os seus produtos. Retorna-se ao cínico axioma dos anos 30: “Beggar thy neighbor” – empobreça o seu vizinho. Nesse movimento, a moeda deixa de ser o que deveria ser, um instrumento de trocas justas (a convenção que torna iguais as coisas diferentes, no pensamento clássico grego), para se transformar em uma arma de guerra.

A moeda é uma construção mental, como todos os símbolos que o homem criou para fazer a sua história. Ao vê-la assim, ao lado da linguagem e da ciência, concluímos que a economia, ou seja, a organização e evolução do trabalho, foi uma astúcia da espécie. Chegou o momento em que o sistema de trocas foi substituído pela adoção da moeda. Mas o valor da moeda depende da credibilidade de quem a emite. Mais do que o peso do metal e da perfeição gráfica do papel-moeda, é essa confiança que garante o valor real do dinheiro. No passado, todas as moedas tinham lastro em bens tangíveis, fosse o ouro, fosse o trigo. A partir do encontro de Bretton Woods, em 1944, o dólar passou a ser a moeda de referência, garantida pelos estoques de ouro dos Estados Unidos. Com base nessa garantia, os norte-americanos passaram a comprar o mundo, com a moeda que emitiam sem que se comprovasse sua relação com as barras de ouro guardadas em seu cofre de Fort Knox. Vinte e sete anos depois de realizado o encontro de Bretton Woods e 25 anos depois de entrar em vigor, o presidente Nixon, dos Estados Unidos, revogou-o: o principal articulador e beneficiário da convenção de Bretton Woods não garantia mais o acordo. A razão era singela: De Gaulle havia anunciado que queria trocar os créditos franceses em dólar por ouro, ouro, mesmo. Outros países pretenderam seguir o seu exemplo: já previam o aumento dos preços do petróleo, diante da organização dos países produtores. Foi assim que, em um dia de agosto de 1971, o colunista pode assistir a uma situação insólita: nos bancos e casas de câmbio da Europa o dólar amanheceu sem cotação. Todas as moedas eram aceitas, em taxas arbitrárias e quase aleatórias – menos a moeda norte-americana. A partir de então, o dólar passou a valer o que queriam os norte-americanos. Fort Knox foi substituído pelos mísseis.

Desde a primeira crise do liberalismo de 1929 (que contribuiu para a 2ª Guerra Mundial) e outras delas menores, até a mais grave, de 2008, o mundo está em busca de uma solução permanente para a guerra cambial, para o controle do mercado financeiro pelos estados nacionais, e para a moralização de um sistema que, a cada nova revelação, mais se assemelha às gangs de Chicago e Nova Iorque. A comparação entre aqueles rapazes e os bandidos de Wall Street é moralmente favorável a Al Capone, Dillinger, Lucky Luciano e outros, que arriscavam a sua vida, e de vez em quando eram abatidos. Madoff nunca andou armado, nem teve que escapar de emboscadas.

Muitos se voltam para Keynes, a grande presença teórica de Bretton Woods, que foi vencido na ideia da criação da moeda mundial (“bancor”) e de um banco internacional de compensações; e outros desejam a volta ao padrão-ouro. A decisão do Fed em colocar mais US$ 600 bilhões em circulação, sem qualquer lastro sólido que os garantam, é mais um argumento para abandonar o dólar como moeda de referência mundial.

O capitalismo terá que inventar logo um novo Keynes, antes que os pobres descubram um novo Marx.

Indo para o arquivo


O QUE SIGNIFICA "LÁ ELE":
Texto encaminhado pelo meu querido amigo e colega de Mestrado André Luís Magalhães lá da Bahia (ele jura que não tem nada que ver com o Antonio Carlos)
Ele ignora a fonte, mas disse que se descobrir vai dar (lá ele) parabéns.

Segue um estudo detalhado sobre a expressão preventiva "lá ele".
O "lá ele" é uma das mais importantes expressões do idioma baianês, mais especificamente do dialeto soteropolitano baixo-vulgar. Segundo os léxicos, a expressão significa "outra pessoa, não
eu" (LARIÚ,Nivaldo. Dicionário de baianês. 3ª ed. rev. e ampl. Salvador: EGBA, 2007, s/n).
A origem da expressão é ambígua. Alguns etimologistas atribuem seu surgimento às nativas do bairro da Mata Escura, enquanto outros identificam registros mais antigos no falar dos moradores do Pau Miúdo. O certo, porém é que o "lá ele" desempenha papel fundamental em um dos aspectos mais importantes da cultura da primeira capital do Brasil - a subcultura urbana do duplo sentido.
Desde a mais tenra infância, os naturais da Soterópolis são treinados para identificar frases passíveis de dupla interpretação. Da mesma forma, os soteropolitanos aprendem desde cedo a engendrar artimanhas para que seu interlocutor profira expressões de duplo sentido.
Assim, as pessoas vivem sob constante tensão vocabular, cuidando para não fazer afirmações que possam ser deturpadas pelo interlocutor. Para indivíduos do sexo masculino, por exemplo, é vedado conjugar na primeira pessoa inocentes verbos como "dar", "sentar", "receber", cair", "chupar" etc. O interlocutor sempre estará atento para, ao primeiro deslize, destruir a reputação de quem pronunciou a palavra proibida.
Como antídoto para a incômoda prática, o "lá ele" surgiu como uma ferramenta indispensável na comunicação do soterpolitano. Assim, o indivíduo que falar algo sujeito a interpretações maliciosas estará a salvo se, imediatamente, antes da reação de seu interlocutor, falar em alto e bom som "lá ele!"
Por exemplo, qualquer homem, por mais macho que seja, terá sua orientação posta em dúvida se falar "Neste Natal comi um ótimo peru". Contudo, se sua frase for "Neste Natal comi um ótimo peru, lá ele!", não haverá qualquer problema. No mesmo diapasão, confira-se:
(i) se um colega de trabalho enviar um e-mail perguntando "vai dar para almoçar hoje?", não se pode redargüir apenas "Sim"; deve-se responder "Vai dar lá ele. Vamos almoçar";
(ii) se, na pendência do pagamento de polpudos honorários, um advogado perguntar ao outro "Já recebeu?", a resposta deverá ser "Recebeu lá ele. Já foi pago";
(iii) ou, ainda, se alguém tiver a desdita de nascer no citado bairro do Pau Miúdo, o que poderá transformar sua vida em um interminável festival de chacotas, deverá sempre valer-se da ressalva:
"eu sou do Pau Miúdo, lá ele".
Para melhor compreensão da matéria, reproduz-se abaixo um exemplo real, ocorrido no último domingo durante a transmissão do triunfo do Esporte Clube Jahia(oops,Bahia!Lá ele!!!!) sobre o Atlético de Alagoinhas:
- Locutor: "Subiu o cartão amarelo?"
- Repórter: "Subiu o amarelo e o vermelho."
- Locutor: "Mas você está vendo subir tudo!"
- Repórter: "Lá ele!"
Note-se que o "lá ele" pode sofrer variações de gênero e número, de acordo com a palavra que se pretende neutralizar. Se, antes de uma sessão do TJBA, alguém perguntar "Você conhece os membros da turma julgadora?", deve-se objetar com veemência: "Lá eles!". Ou se o cidadão for à Sorveteria da Ribeira e lhe perguntarem "Quantas bolas o senhor deseja?", é de todo recomendável que se responda "Duas, lá elas, por favor".
A cultura duplo sentido oferece outros fenômenos da comunicação interpessoal. Veja-se, a título de ilustração, o sufixo "ives".
Em Salvador, não se pode falar palavras terminadas em "u", principalmente as oxítonas. Independentemente de sexo, idade ou classe social, o indivíduo poderá ser mandado para aquele lugar (lá ele). A pronúncia de uma palavra que dê (lá ela) rima com o nome popular do esfíncter (lá ele) será prontamente rebatida com a amável sugestão. Para fazer face ao problema, a vogal "u" passou a ser costumeiramente substituída pelo sufixo "ives".
Destarte, o capitão da Seleção de 2002 é tratado como "Cafives"; o Estádio de Pituaçu virou "Pituacives"; o bairro do Curuzu se tornou "Curuzives"; a capital de Sergipe foi ser chamada de "Aracajives"; e as pessoas que atendiam pela alcunha de Babu, com frequência utilizada na Bahia para apelidar carinhosamente pessoas de feições simiescas, há muito tempo passaram a ser chamadas de "Babives".
Um alentado estudo do "lá ele", que tem outras aplicações práticas além daquelas ora examinadas, pode ser encontrado na obra http://ohsuamisera.blogspot.com

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Terceiro dia: Uai! Isso aqui é um diário?

Antes de começar assine Manifesto "Vixe! Sou paulista, mas não sou idiota. São Paulo para todos".

Provavelmente não teremos essa regularidade. Alguns conteúdos vão variar semanalmente, outros mensalmente. O que der, a gente renova todo dia. Assim, na edição de hoje, postamos - reproduzido do Viomundo - o discurso do Deputado Federal Ivan Valente, proferido agora há pouco na Câmara Municipal de São Paulo, durante a solenidade do Movimento São Paulo para todos. Aqueles que acompanharam mais de perto o nascimento desse blog sabem que a defesa das garantias fundamentais do cidadão - dos direitos humanos, falando genericamente - são a primeira inspiração deste espaço, catalisada na mobilização pela reflexão sobre a irracionalidade dos separatismos, racismos, sectarismos que tentam se vestir com a roupagem do direito a uma cultura local própria (falácia!) e do protesto contra a exploração econômica do estado de São Paulo e seu povo (conceito baseado em premissas capengas). No mais, se não curtiu ainda, experimente o Brasilógio, o Apesar dos Pesares Ferreiras Gullares, Bucha no Jeans e Falando Sério na Academia, antes que mudem. 

A razão tem muitas vozes. Quem tiver ouvidos, ouça.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,
Como paulista, me sinto no dever de subir a esta tribuna para manifestar toda a minha solidariedade ao povo nordestino e meu mais profundo repúdio às manifestações de preconceito que pessoas nascidas em meu estado tem manifestado nas últimas semanas, nos mais diferentes espaços e redes sociais da internet, em relação a brasileiros e irmãos que vieram do Nordeste e constroem São Paulo.
O “movimento”, como todos devem ter acompanhado, começou pelo twitter logo após o resultado do segundo turno das eleições presidenciais. Foi provocado por essa conjuntura, inclusive de maneira totalmente equivocada, porque a candidata do PT venceu não só no Nordeste, mas em Minas, no Rio de Janeiro, em vários estados. Mas sem dúvida é algo que reflete um preconceito historicamente construído em nosso estado, principalmente na capital São Paulo, onde há muito tempo manifestações racistas e de preconceito étnico, regional e de orientação sexual vem sendo tratadas com “naturalidade”, ganhando inclusive pouca visibilidade dos meios de comunicação.
Em cenários como este, a discriminação racial é banalizada e deixa o caminho aberto para incitações à violência e ao ódio de classe, como a praticada pela estudante de direito Mayara Petruso. Como o caso ganhou alguma visibilidade, Mayara agora pode ser processada, mas são incontáveis e cotidianas manifestações desta ordem, que se perpetuam diante da omissão do Estado e da conivência da uma significativa parcela da população paulista.
A gravidade da situação é tamanha que estes cidadãos se sentem à vontade, sem qualquer pudor, para aprofundar seu preconceito e propor ações que beiram ao fascismo. É o caso do grotesco manifesto “São Paulo para os paulistas”, que já conta com milhares de assinaturas na internet. Para seus autores e signatários, então entre as responsabilidades da migração dos nordestinos para São Paulo a alta criminalidade e os hospitais superlotados em nosso estado. São incapazes de enxergar a brutal desigualdade social em nosso país, que força milhares de famílias a deixarem o pouco que tem para traz em busca de alguma dignidade. Tampouco enxergam essa mesma desigualdade como a raiz da violência em todo o Brasil – e não apenas em São Paulo.
O manifesto propõe barbaridades como:
– restringir o acesso a serviços públicos como saúde e educação a pessoas que comprovem residência e trabalho fixo no Estado de S Paulo há pelo menos dois anos.
– acabar com a cobrança de taxas diferenciadas de água, luz e IPTU nas favelas.
– suspender a distribuição de medicamentos gratuitos, de auxílio-aluguel, do programa mãe-paulistana, de quaisquer “bolsas por número de filhos”, de entrega de “casas populares”, de acesso ao “leve-leite”, de entrega de uniforme, material e transporte escolar, de cestas básicas.
– proibir totalmente qualquer tipo de “comércio ilegal”, com apreensão e prisão em caso de reincindência.
E justificam: “São Paulo deve cuidar dos SEUS pobres”.
Atitudes como esta requerem uma resposta enérgica da sociedade, sob o risco de perpetuarmos um terreno fértil para o florescimento da xenofobia e aprofundamento do preconceito étnico-racial e regional em São Paulo, já tão arraigado entre a elite paulista.
A prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a prisão, previsto pela Lei 7.716 de 1989. A lei define como crime de racismo não apenas a prática, mas também a indução ou incitação à discriminação ou preconceito, e estabelece um agravante se esses crimes são cometidos por intermédio dos meios de comunicação.
O Ministério Público Federal em São Paulo já recebeu representação para apuração do caso, envolvendo denúncia contra 94 pessoas, e a política está investigando de quem é a responsabilidade pelo manifesto. São iniciativas importantes para, desta vez, não nos calarmos novamente e, assim, darmos mais um passo no sentido de reverter essa brutal violação de direitos fundamentais.
E que o exemplo do que agora se passa em São Paulo também sirva para despertar uma reflexão em todo o país sobre os inúmeros preconceitos regionais que nossa nação ainda presencia. Por isso, Sr. Presidente, aqui está a nossa solidariedade ao povo nordestino e por um Brasil sem nenhum tipo de preconceito ou discriminação, um Brasil democrático, soberano, igualitário, com justiça social. Abaixo o racismo e o preconceito.
Muito obrigado.
Ivan Valente – Deputado Federal PSOL/SP

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Segundo dia: O bebê sobreviveu ao parto


Chora, mama e faz cocô. Se vai falar e andar são outras histórias. Veremos. Se você chegou até aqui deve ter lido em algum lugar que estamos em fase de testes. Hoje já fizemos algumas mudanças no layout e incluímos outros recursos. Agora nós temos o Brasilógio que trará textos de cultura popular brasileira e afins. Pra começar um texto de rir até doer a barriga. Tem também o Falando Sério que pretende trazer links de textos acadêmicos da área de Direito e Ciência política. Esse link direcionará para outras publicações.  O veteraníssimo (24 horas!) Apesar dos pesares, Ferreiras Gullares vai destacar trechos de poemas de autores consagrados ou não, engajados ou não, socialistas históricos convertidos ao neoliberalismo ou não. Para começar Ferreira Gullar que, de fato, apesar dos pesares, é um dos meus prediletos. Na poesia. O Nuts & Berries é o arquivo das postagens. Era pra ser um arquivo de tudo - alhos e bugalhos. Nossas limitações tecnológicas não permitiram, mas vamos dar um jeito. Lá na franjinha da página vai ter sempre algum vídeo com música, preferencialmente brasileira, mas pode ser qualquer música boa. Somos brasiliófilos, mas não somos bossais.
Nós, nós, nós... Não, não se trata do tratamento plural da pessoa majestática. É pra ser mais do blog e menos do blogueiro e é também pra dizer que tudo aqui é nosso, inclui você. Por hoje é só. Assine o manifesto lá de cima e durma com a consciência tranquila. "Orrevuá".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Nossa primeira postagem

Esta é nossa primeira postagem. Esse blog não é por causa da longa reflexão sobre a conveniência de ter um espaço assim, mas apesar da longa reflexão. Resmungue: "Para quê? Já tem tanta gente escrevendo, copiando, postando, repetindo, explicando, complicando... Ninguém, precisa. Ninguém merece!". É verdade. Sabemos que estamos aqui para chover no molhado. Mas a iniciativa não tem a ilusão de contribuir grandemente para o debate das questões relevantes para a sociedade. O objetivo, na realidade, é uma tomada de posição. Passar da passividade ante aos fenômenos sociais (embora íntima e pessoalmente não estejamos inteiramente passivos) para a ação social. É um ato simbólico, portanto. Qualquer hora é boa para começar. Para iniciar nossa jornada - que ao final vai dar em nada, mas vai desfrutar a paisagem pelo caminho -Comecemos pela divulgação do manifesto "Vixe! Sou paulista, mas não sou idiota. São Paulo para todos". Esse manifesto, criado com o incentivo do Blog Limpinho & Cheiroso, tem a intenção de oferecer um contraponto ao movimento "São Paulo [só] para paulistas", uma das mais recentes e alarmantes reproduções de um tipo de preconceito considerado quase natural e inevitável por grande parte dos paulistanos e paulistas, o preconceito regional. Este, tal como o preconceito racial, o de gênero e outros, agrava-se em combinação com o mais onipresente de todos os preconceitos no Brasil, o preconceito contra a pobreza (poderíamos tê-lo chamado de preconceito de classe, mas essa expressão é eufêmica, já que não consegue suscitar o quanto ele é abjeto e unilateral). Para lembrar que São Paulo é parte do Brasil e que tais iniciativas, além de afrontarem direitos fundamentais, são conflitantes com os valores morais da grande maioria dos paulistas. Não se pode obrigar alguém a  amar o semelhante ou o diferente, mas o respeito é exigível e indeclinável. Vamos dar nossa contribuição, lendo, assinando e divulgando o manifesto.

http://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/7419