Bucha no jeans

Bucha no jeans: Desconfia de quem pretende que só se pode melhorar a totalidade, ou coisa nenhuma. Max Horkheimer

domingo, 21 de novembro de 2010

Estava com saudade

Alguns dias sem publicar nada. Estávamos com saudade. Hoje trazemos um texto novo, contando uma visita a um velho amigo. Renovamos o Brasilógio com um glossário de termos regionais do nordeste do Brasil. Não replicamos nenhum texto de política, mas indicamos os links aí ao lado para ter acesso à excelente entrevista com a Marilena Chauí e tudo o mais que os blogs imperdíveis e incansáveis nos brindam todos os dias. Divirta-se. Bom início de semana.

Visitando o velho

Sentindo-me numa encruzilhada há meses, preocupado com os riscos das minhas escolhas para a minha família, satisfação pessoal, projeção social, saúde e alguns outros et ceteras, lembrei-me daquele velho. Só muito desesperado - eu que cria já não crer em sábios - me prestaria a visitar a casa de alguém depois de tantos anos para buscar conselho.

Pelo caminho, quase desisti cem vezes, mas fui impedido pela inércia e pela ânsia de um copo de água e de um pouco de sombra. O calor de mais de trinta graus fundiria em breve meu corpo ao banco do carro e as mãos ao volante e ao painel, como já fundira o temor e o fastio ao desconforto do corpo, transformando tudo numa só dor física. Acho que por isso cheguei lá.

Entrei no caramanchão de eras, quaresmeiras, jibóias e não sei que outras plantas capazes de trepar pelas paredes e bati no portão de madeira. Uma mulher com a bolsa ao ombro abriu imediatamente com uma cara de surpresa e eu entendi que só abrira por acaso. Ela disse “Só um momento” e voltou correndo pelo passeio sombreado, pôs a cara pra dentro de uma janela e gritou “Tem um moço aqui”. Moço? Era só um tratamento genérico. Já nem sou tão moço assim. Minhas têmporas o dizem. Saiu de novo me pedindo para entrar. Bateu o portão atrás de mim e foi embora sem dizer mais.

Eu estava num jardim. Não sou perito em botânicas e paisagismos e minha curiosidade se limitou a tentar identificar de onde vinham alguns cheiros. Um galho de murta tremulou sobre minha cabeça e seu cheiro provocou uma saudade que eu não pude investigar melhor naquele momento. Havia algo parecido com cidreira, refrescante, e notei uma moita de lavanda ao pé da porta. Devia haver muito mais, mas seria preciso uma meia hora no meio daquela pequena selva pra ler o aparente caos que a natureza levara anos para organizar. 

Passei pela porta-balcão vermelha de onde vinha um cheiro de incenso de sândalo e segui uma sucessão de nuvens de fumaça, umas pequenas copas de árvore suspensas, quase imóveis, esperando o próximo vento que as carregaria para o jardim. Do corredor pude ver as costas do velho inclinado sobre a escrivaninha posicionada sob uma janela que dava para os fundos da casa. Ele me chamou com um aceno, sem olhar para trás, depois girou a cadeira e me encarou, batucando uma música com a outra mão sobre o joelho. Abaixou a música no aparelho ao lado e ao fim de uns eternos três ou quatro segundos me cumprimentou:

-Pensei que não viesse mais. Quanto tempo! Quer um café? Melhor água, né? Pega aí nessa jarra. Tá geladinha. - Levantou da cadeira num pulo e se dirigiu para o corredor.  Voltou quando eu terminava de encher o segundo copo.

- Fui apagar aquele incenso. Foi a faxineira que acendeu. Ela gosta de dar um toque final à sua obra – ria. - Eu adoro sândalo, mas prefiro esses palitos apagados. Senta aí.

Sentamos. O espaço, um tipo de escritório, não passava de um final de corredor, nossos joelhos quase se tocavam. Ele me olhou no olho e afinal vi que o velho não era tão velho. Tinha cabelos brancos desgrenhados e a pele vincada, mas não flácida e sorria com dentes bonitos e olhos brilhantes. Sua aparência geral era bastante saudável. Por que nós o conhecíamos desde sempre como “o velho”? Na época em que freqüentava sua casa, eu e mais uns dois colegas de classe, além de sua sobrinha, aquele homem não devia ser mais velho do que sou agora.

- Sônia me ligou dizendo que talvez você viesse. E então no que eu posso ajudar?

Nesse momento, livre da sede e recuperado do calor da rua, senti vergonha. O que estava fazendo ali? Mexi sobre a almofada da cadeira e me veio à mente que uns dias atrás eu resolvera, pela primeira vez na vida, apanhar um daqueles bilhetinhos num realejo. O vaticínio era um antídoto amargo: “Se você está recorrendo à sorte é porque deve estar muito mal”. Vendiam desaforos! Mas o tom de voz do velho não era exatamente de solicitude protocolar. Era como se ele afirmasse que iria ajudar. Melhor, o seu trabalho já tinha começado.

- Bem, é que ando meio... muito... Ah, tô bem perdido. E esses dias lembrei muito de você. Quando vínhamos aqui, conversávamos horas sobre nossas idéias e vocações e parece que aquilo nos ajudou tanto a decidir o futuro.

- E deu tudo certo no seu futuro? Como você está se sentindo lá? - riu em silêncio.

Sorri amarelo em resposta e continuei no mesmo fôlego:

- Ah, devo ter feito algumas escolhas erradas. Estou me sentindo oprimido pelo rumo que as coisas tomaram, às vezes penso em largar tudo e ir plantar alface na montanha.

- É... pode ser boa idéia. Posso imaginar como está se sentindo. Conquistou quase todas as coisas pelas quais lutou nos últimos vinte anos e agora só consegue pensar no “quase” – riu de novo e voltou a tamborilar a musiquinha no joelho. – Não é isso?

- Não sei. Será? – não sabia mesmo, ou não sabia se sabia. – Sinto que o problema não é a quantidade, entende? É a qualidade. Será que errei tudo desde o começo?

Ele desligou a música, levantou longamente as mãos com as palmas voltadas pra mim como se pedisse pra esperar. – Olha, não vou responder essa pergunta do modo como você espera. Apenas direi, em defesa daquele garoto que você era, que você fez a melhor escolha que poderia ter feito. Nem mais, nem menos do que estava ao seu alcance. E sua vida nem está essa bagunça toda.

- É, eu sei que jovens acham que tudo é pra toda vida. Já não penso mais assim. Mas como posso fazer qualquer coisa com a sensação de estar arriscando o pouco que construí e como não fazer nada e sentir essa frustração imensa? Devo trocar o certo pelo duvidoso...

- Certo? Certa é só a morte. Sinto não poder responder a essa pergunta também. – seus olhos diziam: “não sinto por não querer responder a essa pergunta também, hahaha”. – Direi apenas algo que você leu num livrinho que te emprestei há muito tempo: “um homem sábio nunca pergunta a outro o que deve fazer”. Lembra do resto?

Foi como sentir um daqueles perfumes que refazem um momento preciso lá da adolescência. Embora não lembrasse das palavras, lembrava da idéia: “se ele for estúpido, lhe dará um mau conselho e se for sábio lhe dirá sempre para seguir o seu coração”. Mas era isso? Isso é tão kitsch. O que diz o coração? Como se alguém pudesse saber o que diz o coração!

- Mas agora é diferente – repliquei – parece que tudo está fora do compasso, como se o trem tivesse passado...

- E passou. Muitos trens passaram. E outros passarão. Quem é que precisa de um trem pontual quando não sabe aonde quer ir ou a que hora chegar? - Levantou da cadeira e pôs a mão nas minhas costas convidando a andar para outro cômodo.

Fomos à cozinha onde ligou a televisão e zapeou os canais até parar num jogo de futebol. Sentamos à mesa e ele nos serviu um café da garrafa térmica sem desgrudar os olhos do aparelho. Bebemos enquanto ele acompanhava com avidez os lances do jogo. Eu estava meio decepcionado. Também, o que eu esperava? Pousei os olhos sobre o quadro pendurado atrás do meu amigo velho e ele interceptou meu olhar com uma cara de quem não perdera um só segundo, apesar do futebol, do café e da mudança de ambiente.

- Sabe por que eu mantenho essa “Sant’Ana e Maria com menino Jesus” aí em cima? – A pergunta era retórica. Era claro que eu não saberia responder. Só me lembrei que ele gostava muito dos impressionistas, da pintura e da música. E mantinha até hoje uma réplica de Manet de frente para o longo corredor da casa. Renascentismo não me dizia nada.

- Quase todo mundo acha que esses sorrisos das mulheres do Leonardo sugerem um mistério, não é? – deu um gole comprido e terminou o café - Eu não concordo. Acho apenas sereno, pleno demais. Essa plenitude é que sugere que deve haver algo mais. Há? O que importa? Engraçado como a arte pode dizer tantas coisas, não é mesmo? Como aquele lá no fim do corredor. Aquele diz mais, bem mais. – E voltou para o jogo.

Terminado o café eu me levantei e disse que tinha que ir. Ele me acompanhou pelo corredor até a porta. No caminho, alcançou dois livretos da estante e me entregou sem dizer nada. Obediente, peguei. Vi que pelo menos um eu já lera e que não tinha nada demais, mas não discutiria agora. Ele me abraçou e zombou, pedindo para eu bater o portão e voltar em vinte anos. Atravessei o jardim e só então notei que ele ainda tinha aqueles bichos de madeira escondidos entre as plantas. Um macaco riu irônico de mim.

Dentro do carro, já em frente de casa, o calor tinha arrefecido e escurecia. Um vento morno passava pelas janelas e eu resolvi examinar os livros. Um deles continha uma conferência de um jusfilósofo à qual eu havia assistido pessoalmente no tempo da faculdade e o outro era um livro de poemas bem ruins do qual costumávamos rir muito no tempo do colégio e que eu acho que meu amigo só manteve em sua estante por causa da capa estampada com uma pintura de Seurat. Já lera ambos, de fato. Para quê aquilo? Conhecendo o velho eu sabia que não eram escolhas casuais, mas talvez ele tivesse perdido a mão. Eu também já não era aquele rapaz que lia mensagens universais em qualquer vôo de abelha ou latido de cão.

Entrei em casa e o resto da noite foi como de costume, até acordar durante a madrugada. Coisa rara, mesmo nesses tempos de angústia. Fui ao banheiro, tomei água e resolvi sentar um pouco na sala. Peguei os dois livrinhos, folheei aquela conferência e comecei a me lembrar do dia em que a assisti. Lembrei que ficara bastante decepcionado com a conferência. Tinha muita expectativa em razão da fama do conferencista e de já ter lido diversos textos seus de grande complexidade.

Naquele dia ele discorrera longamente sobre nossa incapacidade de perceber o valor das coisas a que amamos ou de que necessitamos, até o momento em que as perdemos. Depois associou esse comportamento a um traço cultural do cristianismo e ofereceu seus fundamentos lógicos e históricos para tudo isso. Eu não era bem o tipo teimoso, que refuta tudo gratuitamente, tampouco o tipo de aluno investigativo que questiona intencionalmente todo conceito a fim de testá-lo e aprofundar a compreensão. Mas naquele dia discordei de tudo. De muito, pelo menos. Era patente que qualquer criança de três anos de idade, incólume ainda à contaminação por qualquer cultura religiosa, só se dava conta da estima que tinha pelo seu brinquedo quando o perdia. Eu achei que isso era humano demais, em qualquer tempo e lugar.

Não sei se hoje concordo mais comigo ou com o filósofo. Mas a razão de ter recebido aquele livro me veio a reboque da retrospectiva. “O valor do objeto perdido”. O que tinha realmente importância para mim? Eu julgava não saber mais o que me era caro. Pois meu amigo velho estava me ajudando a escolher: “Perca para saber o que lhe é caro?”. Entretanto não seria razoável pedir a um homem que perdesse tudo a fim de descobrir do que mais gosta.

Como fazê-lo então? Ora, para essa questão, a resposta estava na capa do livrinho ruim. Uma pintura impressionista pode ser mais bem contemplada à distância! Eu devia me afastar. Só isso: olhar à distância.

O velho não dizia essas coisas diretamente. Nunca. Acho que esse era o seu jeito socrático de mostrar que as respostas antecedem as perguntas.

Voltei ao quarto, vesti uma roupa, juntei umas peças numa bolsa e deixei um bilhete à minha mulher: “Vou passar uns dias fora para por as idéias em ordem. Não se preocupe. Ligo todas as noites. Beijos”.